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  • Foto do escritorIr. André Pinto, O. Cist.

Lectio Divina: perene confronto e escuta de Deus


 

O confronto com as Sagradas Escrituras

 

A leitura da Divina Escritura hoje em dia é bastante valorizada, difundida e incentivada nos diversos ramos de vida consagrada, inclusive entre os leigos. A prática deste exercício espiritual é uma leitura tranquila, atenta, assídua e com um sentido puramente de oração. Sem ater-nos às preocupações em relação aos aspectos histórico, filosófico, às curiosidades meramente religiosas. O que deve nos prender a esta leitura é o simples prazer que teremos em dialogar com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que vêm ao nosso encontro apesar de nossas fraquezas. Sem pressa teremos a oportunidade de nos deter em uma palavra, frase ou versículo do texto que nos chamou a atenção e neste ponto se aprofundar, meditar, “degustar”, conversando com seu divino Autor e daí tirar frutos que servirão de alimento para todo o nosso dia.

Chama-nos a atenção o Decreto do Concílio Vaticano II, sobre a renovação da vida religiosa: “Cultivem, pois, assiduamente os membros dos institutos o espírito de oração e a oração mesma, haurindo-os das fontes genuínas da espiritualidade cristã. Em primeiro lugar manuseiem cotidianamente a Sagrada Escritura para aprender da leitura e meditação dos Livros Sagrados “o sobreeminente conhecimento de Jesus” Fl 3,8 (PC 7).

Esta prática cotidiana esteve presente em toda a história do monaquismo. É uma tradição entre os monges orientais e ocidentais. A Regra de São Bento nos exorta: “em determinadas horas, devem os irmãos ocupar-se com o trabalho manual e, em outras horas, com a leitura espiritual.” (...) “Da quarta hora até perto da hora sexta, entreguem-se à leitura.” (...) “De quatorze de setembro até o início da quaresma, entreguem-se à leitura até o fim da hora segunda...” (...) “Após a refeição, entreguem-se às suas leituras ou ao estudo dos salmos” (RB 48,1.4.10.13).

Costumam-se dizer que são quatro as etapas a atingir na lectio divina: leitura, meditação, oração e contemplação. Porém ainda há quem acrescente a “ruminação” que seria a repetição mental do trecho lido e meditado durante todo o dia do monge, mesmo ou, principalmente, nos momentos de trabalho manual que é a complementação da vida monástica beneditina/cisterciense. “Para que em tudo seja Deus glorificado” (1Pd 4,1 / RB 57,9).

Toda a vida do monge deve ter por guia a Palavra de Deus. “Do nascer do sol até o seu ocaso, louvado seja o nome do Senhor” (Sl 112,3). Se no princípio da caminhada monástica parece-nos demasiadamente difícil manter a disciplina da leitura orante devido as distrações mentais, por falta de costume em parar num santo “ócio” para encontrarmo-nos com Deus e conosco mesmos, ao decorrer dos anos esta prática deverá transformar-se em algo desejado ansiosamente pelo nosso espírito, por se tratar de um encontro íntimo ou, mais que íntimo, da pobre criatura com o seu Criador. Apesar da infinita distinção, é o encontro entre dois verdadeiros e queridos amigos. Com o passar do tempo, esta intimidade tenderá a crescer sendo cada vez mais pessoal, brotando daí um conhecer-se mútuo entre os dois amigos e deste conhecer-se, nascerá o amor ao Amor, a que “nada absolutamente deve antepor” (RB 72,11). Porque “à medida em que se progride na vida monástica e na fé, o coração se dilata e corre-se no caminho dos preceitos de Deus com inefável suavidade de amor...” (Prólogo RB 49).

Por sua vez, nos dirá o Diretório Espiritual dos Monges e Monjas da Congregação Brasileira da Ordem Cisterciense (parte III, A Vocação Monástica, nº 1.7. Dificuldades na Oração): “Todavia, mesmo para os mais maduros, a oração será sempre um certo combate. Conspiram contra ela as indisposições de toda ordem. (...) Deve bastar-lhe nestas ocasiões, apenas o desejo de estar diante de Deus, ancorado na certeza de sua presença e de seu amor. Ainda que isso não seja sentido, a vontade deve manter-se firme neste propósito, procurando reavivar a fé na fidelidade divina. (...) Ao longo dos anos, o monge adquirirá a serena convicção da amizade e proximidade de Deus”.

Em geral, nas comunidades monásticas reserva-se uma ou duas horas, dentro das atividades cotidianas, à prática da lectio divina. Porém quando não se é possível realizá-la, que faça ao menos trinta ou quarenta minutos. Se até isso ainda é difícil, que se dedique quinze minutos (mas que isso não seja o costume). Desde que sejamos fiéis a este encontro salutar, pois mais importante que o tempo utilizado para a leitura, é a qualidade, a disposição para esta entrega, o despojamento, a alegria em colocar-se a escutar o Senhor e os frutos que ela trará. Deveríamos ainda dizer que a interpretação da Divina Escritura nesta leitura só terá valor real se aquilo que foi lido for interiorizado e explodir. Porque “aquele que ouve minhas palavras e as põe em prática será comparado ao homem prudente...” (Mt 7,24). Assim como o amor, por sua própria natureza, não se contém em si mesmo, sentindo necessidade de passar ao outro (ao próximo) o que produz (o amar), o resultado da leitura, meditação, oração e contemplação, tem que ser: a prática. “Tornai-vos praticantes da Palavra...” (Tg 1,22).

E como deixar de lembrar-se daquela que fez de sua vida a prática, com o exemplo supremo de obediência daquilo que “ouvia e guardava em seu coração”? (Lc 2,51). Quem, mais que Maria Santíssima, soube vivenciar a lectio divina? Quem primeiro praticou “a vontade do meu Pai” (Mt 12,50), como disse Jesus aos que o avisavam da chegada, a procura dele, de seus irmãos, suas irmãs e sua mãe? Senão esta Mãe?

“Por isso é mister que os membros de qualquer instituto, buscando unicamente e sobre todas as coisas a Deus, unam a contemplação – que os torne capazes de aderir a Deus com toda a mente e o coração – ao ardor apostólico, com o qual se esforcem por colaborar na obra da Redenção e dilatar o Reino de Deus” (PC 5).


Como está escrito: “os que me comem terão ainda fome, os que me bebem terão ainda sede” (Eclo 24,21), peçamos ao Senhor Jesus Cristo esta graça do temor de Deusque é “a raiz da sabedoria” (Eclo 1,20). “A plenitude da sabedoria é temer ao Senhor, ela nos inebria com os seus frutos” (Eclo 1,16). E que nós nunca nos sintamos por demais saciados daquilo que, nas páginas da Bíblia Sagrada, comermos e bebermos.

Por fim gostaria de relatar algo ocorrido comigo: em certa ocasião, ao dirigir-me à nossa igreja, por diversas vezes detive-me tentando retirar um minúsculo espinho que me espetava o dedo de forma “torturante” e incômoda. Finalmente consegui livrar-me dele; daquilo que parecia não me deixar em paz. Ao entrar e sentar-me num dos bancos da nave da igreja totalmente vazia, a primeira visão que deparei foi a mão do Crucificado iluminada por um raio de sol que adentrava pelo vitral – unicamente a mão, todo o corpo permanecia na penumbra do entardecer – logo me veio um pensamento: “um mísero espinho quase invisível em meu dedo me 'torturava' tanto... e aquele cravo na mão do Salvador?”.

Lembremo-nos que de muitas formas Deus nos fala sem pronunciar (ou lermos) uma palavra que seja. Mostra-nos, nos fatos e imagens, que muitas vezes contemplamos no nosso dia a dia, Vossa Palavra Viva. Para que tenhamos a bela oportunidade de praticarmos uma autêntica e perfeita Lectio Divina.

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